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quarta-feira, 2 de setembro de 2009

Preto no Branco - Luis Fernando Verissimo

“Escrevo peças porque escrever diálogos é a única maneira respeitável de você se contradizer.” Tom Stoppard
Um palco vazio. Entram dois homens, um vestido de preto e o outro vestido de branco. Eles representam os dois lados do Autor. Isso a platéia já sabe porque está escrito no programa. Pelo Autor. Ou por um dos lados do Autor, já que o outro era contra. O outro lado do Autor queria que o espectador deduzisse no transcorrer do diálogo que os dois autores representam a mesma pessoa, porque, na sua opinião, dar muitas explicações para a platéia subverte a relação de cumplicidade misturada com hostilidade que deve existir entre palco e público, e nada destrói este clima mais depressa do que o público descobrir que está entendendo tudo. Os dois lados do Autor discutiram muito sobre isto e prevaleceu o lado que queria ser perfeitamente claro, mesmo com o perigo de frustar o público. Palco vazio. Dois homens, representando os dois lados do Autor. Um todo de preto, o outro todo de branco.
Homem de Branco - Preto.
Homem de Preto – Branco.
Branco – Por que não cinza?
Preto – Vem você com essa absurda mania de conciliação. Essa volúpia pelo entendimento. Essa tara pelo meio-termo!
Branco – Senão fosse isso, nós não estaríamos aqui. Foi minha moderação que nos manteve longe de brigas. Foi minha ponderação que nos preservou. Se eu fosse atrás de você...
Preto – Nós teríamos vivido! Pouco, mas com um brilho intenso. Teríamos dito tudo que viesse à cabeça. Distinguido o pão do queijo com audácia. Posto pingos destemidos em todos os “is”. Dado nome completo a todos os bois!
Branco – Em vez disso, fomos civilizados. Isto é, contidos e cordatos.
Preto – E temos tiques nervosos para provar.
Branco – Você preferiria ter dito a piada que magoaria o amigo? A verdade que destruiria o amor? O insulto que nos levaria ao Pronto-Socorro, setor de traumatismo?
Preto – Preferiria. Para poder dizer que não me calei. Para poder dizer “Eu disse!”
Branco – Ainda bem que não é você quem manda em nós.
Preto – Não, é você. Sempre fazemos o que você determina. Ou não fazemos. Não dizemos. Não vivemos! Estou dentro de você, fazendo, dizendo e vivendo só em pensamento. Se ao menos eu pudesse sair aos sábados...
Branco – Para que, para nos matar? Pior, para nos envergonhar?
Preto – Melhor se envergonhar pelo dito e o feito do que pelo não dito e não adiado. Você sabe que cada soco que um homem não dá encurta a sua vida em 17 dias? E cada vez que um homem pensa em sair dançando um bolero e se controla, seu fígado aumenta? E cada...
Branco – Bobagem. Ainda bem que eu sou verdadeiro nós.
Preto – Não, eu sou o verdadeiro você.
Branco – Você só é nós em pensamento. Você é minha abstração.
Preto- Sou tudo o que em nós é autentico e não reprimido. O seja: você é minha falsificação.
Branco – Você não é uma pessoa, é uma impulsão.
Preto – Você não é pessoa, é uma interrupção.
Branco – Mas quem aparece sou eu.
Preto – Então o que estou fazendo neste palco, e ainda por cima de malha justa?
Branco – Você só está aqui como uma velha tradição teatral, o interlocutor. Um artifício cênico, para o Autor não falar sozinho. “Escrever diálogos é a única maneira respeitável de você se contradizer.” Tom Stoppard.
Preto – Quer dizer que eu só entrei em cena para dizer...
Branco – Branco. E eu...
Preto – Preto. Por quê?
Branco – Para mostrar à platéia que todo homem é a soma, ou a mescla, das duas contradições. Que no fim o destino comum de todos, cremados ou não cremados, não é ser branco ou preto, é ser cinza.
Preto – Mostrar a quem?
Branco – A pla... Onde está a platéia?!
Preto – Foram todos embora.
Branco – Será porque não entenderam o diálogo?
Preto – Acho que foi porque entenderam.
Luiz Fernando Verissimo. Preto e Branco. Publicado originalmente no jornal O Estado de São Paulo – Caderno 2, em 25/11/2001.

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